domingo, 5 de maio de 2013

A história de Aria Tara1

(KATMANDHU, FOTO DE R. SAMUEL)


A história de Aria Tara1

TEXTO SEM AUTORIA DEFINIDA

Em uma longínqua era, num universo chamado Luzes Variadas, apareceu, certa vez, um Buda abençoado de nome Dundubi-svara. Havia, nesse universo, uma princesa chamada Lua da Sabedoria que devotou-se inteiramente ao seu ensinamento. Por um milhão de milhões de anos ela, a cada dia, fez oferendas ao Buda e aos seus incontáveis discípulos, aos sravakas e aos bodisatvas. Quando os frutos de sua prática amadureceram, surgiu-lhe a motivação da iluminação — a manifestação de Bodicita, o desejo de ajudar a todos os seres. Nesta ocasião, alguns monges deram-lhe o conselho:
"Devido a suas raízes de virtude,
 se você, neste seu corpo atual,
 rezar para em uma próxima vida
 tornar-se um homem
 e praticar os ensinamentos,
 obterá sucesso.

 Isso é o que deve fazer, e, ao final,
 em corpo masculino,
 poderá atingir a iluminação."

 
A discussão foi grande. Finalmente a princesa falou:
"Não há homens ou mulheres,
 Nem ego, nem personalidade ou consciência.
 Os rótulos "masculino" e "feminino" não têm essência,
 Mas maculam ainda mais este mundo enganoso."

 "Muitos desejam a iluminação em corpo masculino,
 Mas há poucos que, em corpo feminino, trabalhem
 Pelo benefício dos seres sencientes.
 Portanto, até que samsara esteja esvaziado,
 Trabalharei, em corpo feminino,
 para benefício de todos os seres sencientes".

 Por um milhão de milhões de anos ela manteve-se no palácio real. Praticou a concentração e a correta atitude com relação aos objetos dos cinco sentidos, e, dessa forma, atingiu a aceitação de que todos os objetos são não-produzidos2 (anutpattika-dharma-ksanti) e atingiu o samadi "salvando todos os seres sensoriais". Pelo poder dessa realização, à cada dia, pela manhã, liberava um milhão de milhões de seres sencientes dos pensamentos mundanos, e nada comia até que eles estabilizassem esta visão. À cada final de tarde, produzia também esta liberação em um número similar de seres sencientes. Devido a isso seu nome anterior foi mudado para "Tara, a Salvadora". Vendo isso, o Tatagata Dundubhi-svara profetizou: Tão pronto você manifestar a iluminação insuperável, será conhecida pelo nome de "Deusa Tara".
Mais adiante, em um eon chamado Vibuda (Expandido), diante do Tatagata Amogasidi, fez o voto de proteger e salvar todos os seres sensoriais de todas as ameaças, pelos infinitos mundos das dez direções.
Concentrando-se no samadi "Derrotando Todos os Maras", a cada dia, durante noventa e cinco eons ela estabeleceu uma centena de milhares de bilhões de líderes de seres sensoriais em diana, e, à cada anoitecer, subjugou um bilhão de Maras, senhores dos céus de Paranirmita-vasavartin. Por isso recebeu os nomes de Tara (Mãe Salvadora), Mãe Amorosa, Veloz Salvadora, e Heroína.
 
Adiante, em um eon chamado Não-obstruído, o monge Brilho da Luz Imaculada foi consagrado com raios de luz de grande compaixão por todos os Tatagatas das dez direções e, assim, tornou-se Ariavalokita (Avalokitesvara—Bodisatva da Compaixão). Então, novamente os tatagatas das cinco famílias e todos os outros budas e bodisatvas consagraram-no com grandes raios de luz da natureza da sabedoria da onisciência, de tal forma que, da combinação dos raios de luz anteriores com os últimos, como pai e mãe, surgiu a Deusa Tara. Emergindo do coração de Avalokitesvara, ela manifestou a intenção iluminada de todos os Budas em proteger os seres sencientes dos oito grandes medos3.
Mais adiante, no eon chamado Mahabrada (Muito Afortunado), ela ensinou manifestando-se na aparência "Imovível" do estágio de encorajamento. No eon chamado Asanka, pela consagração de todos os Tatagatas das dez direções, tornou-se conhecida como a mãe que origina todos os budas.
Tudo isso em passado muito remoto, em tempos sem início.
 
Tara responde?
Quando há um problema, isto se dá referido a causas e condições. Quando as causas e condições mudam, o problema muda ou desaparece. Ao focamos Tara, focamos a natureza da espacialidade e luminosidade pura. Nesta, que é a condição natural de nossa mente, os problemas são focados com o olho de verdade (sansc.: Prajna, tib.: Sherab) e mostram sua natureza verdadeira: sonho, ilusão. São como uma bolha, uma faísca atmosférica: surgem e desaparecem, não têm consistência, natureza própria, sustentação.
Quando assistimos um filme, a identificação com os personagens é imediata. Ainda que esteja claro que trata-se de uma ficção, as emoções surgem e somos capazes de nos inflamar. Por um lado isso é completamente ilusório. Por outro lado, tem a beleza da dança da natureza fundamental da mente, produzindo manifestações transitórias e fugazes ao operar sob condições variadas que se sucedem. O que chamamos "realidade da vida" não é diferente.
A realidade das experiências ao assistirmos um filme é criada por uma combinação de causas internas—marcas mentais associadas as seis emoções perturbadoras4 (carma)—e fatores vindos através dos sentidos físicos. Como resultado, surgem medo, esperança, raiva, orgulho, desejo, inveja, avareza, espaço, tempo, justiça, certo e errado. Exatamente o mesmo ocorre quando das experiências "reais".
Quando percebemos a natureza da realidade que está além das transformações e dos referenciais, além de espaço, tempo, nome ou forma, além de propósito, de certo ou errado, todos os jogos passam a ser vistos como o que são: jogos. Atuam pela modulação da energia fundamental indiferenciada. Dão a sensação de realidade pela experiência de fixação que temos neles. São ilusórios porque surgem sob referenciais, faltando-lhes consistência própria. Entretanto, como um sino que soa ao ser tocado, são perfeitos em sua finitude, manifestação maravilhosa da natureza básica atuando sob condições.
O frescor e alívio dessa compreensão são bênçãos de Tara.
 
Pedindo ajuda
Faça uma lista cuidadosa do que você quer.
Olhe agora a sua lista. Há algo nela que seja permanente? Algo que não possa ser roubado, que não vá estragar, envelhecer ou morrer? Há algo aí que você não tenha que abandonar ao fim da vida ou antes mesmo? Existência cíclica é esta infindável experiência de carência por objetos, situações e pessoas, apenas para mais adiante isto originar mais sofrimento. Em cada corpo, por incontáveis vidas até a extinção completa da ignorância, sucedem-se estas experiências de nascimento-e-morte.
Olhe novamente sua lista. Se o que você está buscando é impermanente, seu esforço apenas movimenta a existência cíclica, essa roda da vida onde a doença, velhice, decrepitude e morte são os estágios finais das ilusões criadas. Foi justo a percepção desse ponto que produziu no príncipe Sidarta a motivação de atingir a liberação da condição de um buda, tornando-se capaz de ajudar efetivamente os outros seres em seu vaguear sem rumo. Esta é a diferença entre os deuses mundanos e os budas: os primeiros nos suprem do que é transitório e resulta em sofrimento, os budas, do que é permanente e libertador. Os budas nos apontam a natureza fundamental de nossa própria mente, idêntica e una com a mente de Tara e todos os budas.
Quando o príncipe Sidarta estava sentado sob a árvore Bodhi sendo atacado por Mara e seus exércitos, os deuses que até então o tinham aconselhado e propiciado seu caminho, impotentes e aterrorizados ficaram ao lado, apenas assistindo. Os deuses estão submetidos à dualidade, à ignorância, à noção de um eu separado, de outros eus, de espaço, tempo, ganho e perda e, portanto, estão sob o domínio de Mara. Tudo o que oferecem está sujeito a doença, velhice, decrepitude e morte. A despeito de seu poder, estão presos à roda de samsara. Ainda que sua vida seja longa, ao final o fruto de sofrimento e morte é também inevitável. Mesmo eles necessitam a iluminação—a transcendência—, pois, não reconhecendo sua natureza verdadeira, atuam por carma, submetidos a Mara.
 
Foque seu problema e peça clareza a Tara. Peça para que você e todos os seres reconheçam a natureza verdadeira de si mesmos, e que o sofrimento se extinga. Este fruto de liberação não pode ser roubado, nunca será perdido, não pode ser esquecido, não cria rugas, não precisa ser polido. É o fruto que atravessa vida-e-morte, está além de espaço e tempo, além de eu-e-outro, além de todos os universos e, ao mesmo tempo é inseparável de tudo isso. Quando pedir, a liberação que surgir em sua mente é a imediata resposta de Tara. O que mais merece ser pedido? Que outra ajuda haverá para você, para seus filhos, seus pais, seus queridos, quando eles se aproximarem da morte? Tara pode proporcionar esta ajuda, os deuses não. Tudo o que os deuses proporcionaram durante a vida ou que possam neste momento oferecer será inútil.
Isso não se dá apenas no momento da morte. Em realidade, neste exato momento estamos, como o Buda Sakiamuni, sob a árvore bodhi, atacados por Mara. Os deuses jogam flores. Só Tara pode nos oferecer ajuda: a liberação pelo reconhecimento de nossa própria natureza e do aspecto ilusório de tudo o que Mara produz contra nós.
 
Se achar difícil entender assim, veja: uma criança que grite mãaeee!, irá provocar a imediata solidariedade de quem estiver à volta. Com muito mais razão, quando recitar o mantra de Tara — Om Tare Tam Soha —, Tara e todos os budas imediatamente responderão. Experimente! Você pode usar qualquer mantra, o essencial é focar a mente em Tara e nos budas. É imediato. Quando Om Tare Tam Soha ecoa, o mundo muda e a iluminação torna-se possível.
Mistério? Evidentemente. É como o mar para o sapo que vive preso dentro de um mesmo poço; como concebê-lo tendo o poço como referencial? Nosso poço é a dualidade, a separatividade, os seis venenos. Só isso vemos. A tudo vemos através disso. O que está além da dualidade, além de nossos referenciais, não podemos conceber, até duvidamos, chamamos de mistério. Neste sentido a natureza de buda, ainda que seja nossa própria essência, é inteiramente misteriosa, transcendente que é à dualidade.
 

 
Há realidade em Tara?
Qual sua realidade? O que é Tara?
Quando nos defrontamos com os oito grandes medos, nossos olhos buscam Tara. Nada mais nos resta. Pedimos ajuda e Tara nos ampara. Ela nos ampara no sentido condicionado, como os deuses de samsara, presos à roda da vida. Enfim, se os oito grandes medos estão nos perturbando precisamos de socorro. Mas Tara não se limita a este tipo de ajuda. Tara revela-nos simultaneamente nossa verdadeira natureza.
Diferentemente dos deuses mundanos, quando estamos sob a árvore bodhi Tara corre em nosso socorro com o tipo de ajuda mais eficaz. Tara nos transporta para a outra margem, para além de espaço, tempo, nome, forma, dualidade, para a iluminação.
Uma das manifestações de Tara é Prajna-Paramita. A experiência de Avalokitesvara com Prajna Paramita é narrada no Maha Prajna Paramita Hridaya Sutra5. Prajna Paramita traz liberação por oferecer o reconhecimento da realidade última. Forma é vazio, vazio é forma. Forma nada mais é do que vazio. Vazio nada mais é do que forma.
Não é que forma, sendo vazia, não exista objetivamente. Na verdade os critérios de objetividade, como, por exemplo, os trazidos pela ciência e pela nossa experiência cotidiana continuam plenamente válidos. É que a forma, ainda que exista objetivamente, não tem existência absoluta, ou seja, suas qualidades surgem em processos de relação e não dela mesma6. A forma é vazia de existência inerente.
A todos os problemas que enfrentamos, atribuímos existência própria. A compreensão de que os problemas e dificuldades surgem sob condições, não têm natureza própria, é o início da travessia para a margem da iluminação, e possibilita a experiência além da dualidade.
A pura atenção plena é esta experiência. É a forma sutil de Tara. Está além dos referenciais, é espacialidade, vacuidade e compaixão. Por ser o samadhi da iluminação, é a experiência mãe de todos os budas — os vitoriosos.
Tara existe mesmo? Olhando com cuidado, vemos que nossas próprias características pessoais mudam. Nosso ser de amanhã não é o mesmo que o de hoje. Nossa realidade é fugaz e imprecisa. Já Tara tem a natureza além da dualidade, suas faces são a espacialidade, luminosidade e compaixão imutáveis. Sua realidade é palpável, precisa e estável, muito diferente da nossa – fugaz, ilusória, breve7.

 
Notas do autor:

1. Recontado à partir de "The Golden Rosary, A History Illuminating the Origin of the Tantra of Tara", Taranatha, do ano de 1608, citado em "In Praise of Tara", Martim Willson, Wisdom, Boston, 1996, e de "Comentários Sobre Tara Vermelha", Chagdud Khadro, Rigdzin Editora, Porto Alegre, 1997.
2. Ou seja, não possuem existência independente, por si mesmos.
3. O medo dos elefantes, como projeção da ignorância; do fogo como projeção da raiva; dos leões, como orgulho; dos ladrões, como visões falsas; das enchentes, como avareza; das cobras, como inveja; da prisão como cobiça; e o medo dos demônios, como projeção da dúvida. V. "Comentários Sobre Tara Vermelha", op.cit.
4. Orgulho, inveja, desejo-apego, ignorância-obtusidade mental, aquisitividade-avareza, ódio-raiva. Cada uma dessas características constitui a base cármica para a experiência dos seres sencientes que dá surgimento a cada um dos seis reinos correspondentes de samsara.
5. Sutra do Coração ou Maka Hannya Haramita Shingyo.
6. Para um exame cuidadoso deste ponto, ver "A Cognição Budista"; A.Aveline, Bodisatva nº2 e 3., e também o livro "Jóia dos Desejos".
7. Para praticar a meditação silenciosa, visualizações e recitações de mantras de Tara, de modo geral todos os centros de budismo tibetano podem auxiliá-lo. As práticas de Tara Vermelha podem ser encontradas em várias cidades do Brasil exterior.


Um comentário:

Antonio Carlos Rocha disse...

Parabéns! Belíssimo texto!